São 5 milhões de mulheres, segundo pesquisa nacional inédita do Ministério da Saúde. Não foram observadas diferenças entre mulheres que pertencem a grupos religiosos distintos."Pesquisa mostra a cara da mulher que aborta. Não é uma outra, é uma de nós. É a nossa colega, a nossa vizinha, a nossa irmã", diz coordenadora.
Uma em cada sete brasileiras de até 40 anos já fez aborto, um número aproximado de 5 milhões de mulheres. Na faixa etária de 35 a 39 anos, a proporção é ainda maior: uma a cada cinco já decidiu abortar.
É o que revela uma pesquisa nacional inédita, financiada pelo Ministério da Saúde e realizada pelo instituto Ibope.
No total, foram ouvidas 2.002 mulheres entre 18 e 39 anos, das capitais brasileiras e de municípios acima de 5.000 habitantes. Foram excluídas as que vivem na zona rural e as analfabetas -454.374 brasileiras, segundo o IBGE.
O estudo mostra que 48% das mulheres que abortaram usaram algum medicamento e que 55% delas ficaram internadas em razão do procedimento.
O aborto é mais frequente entre as mulheres com baixo nível de escolaridade: 23% daquelas com até o quarto ano do ensino fundamental, contra 12% entre as que concluíram o ensino médio.
A proporção de mulheres que fizeram aborto cresce de acordo com a idade. Vai de 6% (dos 18 aos 19 anos) a 22% entre as de 35 a 39 anos.
"A pesquisa mostra a cara da mulher que aborta. Não é uma outra, é uma de nós. É a nossa colega, a nossa vizinha, a nossa irmã, a nossa mãe. Geralmente, tem companheiro e segue uma religião", afirma a antropóloga Débora Diniz, professora da UnB (Universidade de Brasília) e uma das coordenadoras da pesquisa.
Religião
Na pesquisa, não foram observadas diferenças entre mulheres que pertencem a grupos religiosos distintos.
Para o ginecologista Thomaz Gollop, professor livre docente pela USP, os resultados da pesquisa revelam que os dogmas religiosos estão totalmente dissociados daquilo que acontece na sociedade e que a criminalização do aborto não impede que milhares de mulheres continuem adotando a prática.
Margareth Arrilha, diretora-executiva da CCR (Comissão de Cidadania e Reprodução), afirma que os dados refletem que as mulheres continuam abortando e não encontram respostas nas políticas públicas de saúde. "Estamos vivendo um retrocesso em todas as esferas, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário", afirma.
O projeto que trata da descriminalização do aborto está parado na Câmara. A ação que discute se a mulher tem ou não direito a interromper a gravidez em caso de fetos anencéfalos (sem cérebro) ainda não foi votada pelo STF (Supremo Tribunal Federal). E, recentemente, o governo federal retirou o apoio à descriminalização do aborto do Plano Nacional de Direitos Humanos.
O médico Adson França, assessor especial do Ministério da Saúde, diz que a pesquisa reafirma que o aborto é uma questão de saúde pública, "como o ministério tem repetido inúmeras vezes".
França afirma que a pasta atende hoje 34,5 milhões de usuárias do SUS com todos os métodos anticoncepcionais. Isso, diz ele, já começa a refletir no número de abortos.
De 2003 para 2009, houve uma queda de 16,6% no total de curetagens (de 240 mil para 200 mil), a maioria por conta de abortos provocados.
Abortos
Os dados da pesquisa não permitem estimar o número de abortos no país. "É seguramente maior do que o número de mulheres que abortam porque uma mesma mulher pode ter feito mais de um aborto. O número também sobe se as áreas rurais e a população analfabeta forem computadas", explica Débora Diniz, da UnB.
Segundo ela, as analfabetas foram excluídas porque não poderiam preencher o questionário das suas entrevistas, e a zona rural, pelo alto índice de analfabetismo entre mulheres.
Pesquisa usou duas técnicas de sondagem
A PNA (Pesquisa Nacional de Aborto), feita pela UnB (Universidade de Brasília) e pelo Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), envolveu duas técnicas distintas de sondagem.
Cada entrevistada preencheu sozinha um questionário e o depositou na urna e respondeu a outro, aplicado por uma entrevistadora.
Os dois questionários possuíam códigos que permitiam seu pareamento, mas não a identificação das participantes. O questionário da urna confirmava a idade exata e perguntava se a mulher havia realizado aborto. Em caso afirmativo, com que idade foi o último aborto, se usou medicamento para fazê-lo e se ficou internada.
A amostragem e as entrevistas foram realizadas pela Agência Ibope Inteligência, em janeiro último. A margem de erro é de dois pontos percentuais.
"EU FIZ"
"Sou a favor do direito ao aborto quando ele é necessário. Eu fiz um quando tinha 31 anos e me arrependo. Foi uma irresponsabilidade. Fiz simplesmente porque não queria ter filhos"
CÁSSIA KISS
atriz
"O resultado dessa pesquisa mostra a nossa realidade. As mulheres têm que trabalhar e não podem ficar parindo o tempo todo. Sou a favor da legalização do aborto, mas também gostaria que ele fosse extinto. Quando fiz, sofri muito. Mesmo legalizado, na suíte master do [hospital] Albert Einstein, eu não recomendo a ninguém"
CISSA GUIMARÃES
atriz
"Sabia que um filho naquele momento iria ser um balde de água fria. Por isso, não pensei duas vezes em abortar. Uma amiga conseguiu o Cytotec (misoprostol). Segui as instruções, mas o embrião não foi expelido. Tive que fazer uma curetagem. Foi traumático, mas, com o tempo, deixei de pensar no assunto. Não me incomoda. Acho um absurdo criminalizar mulheres por abortar. O Brasil quer ser tão moderno, mas é tão retrógrado. É fácil jogar pedras quando não se vive o problema na pele"
LUCIANA BRAGA
advogada
Projeto na Câmara define o que é vida humana
Após acaloradas discussões que duraram quatro horas, a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara aprovou na última quarta um projeto de lei conhecido como Estatuto do Nascituro. Entende-se por nascituro o ser humano concebido, mas ainda não nascido.
O conceito inclui, inclusive, embriões produzidos por fertilização in vitro ainda não transferidos para o útero.
O projeto ainda precisa passar pelas comissões de Finanças e de Constituição e Justiça. Só depois será votado no plenário da Casa. Posteriormente, será analisado pelo Senado.
O projeto vem causando um grande alvoroço porque as entidades que defendem a descriminalização do aborto entendem que ele, ao definir a vida humana começa já na concepção, eliminaria a hipótese de aborto em qualquer caso, inclusive naqueles autorizados pelo Código Penal -estupro ou risco de vida para a mãe.
Mas, na quarta, a deputada relatora Solange Almeida (PMDB-RJ) elaborou uma complementação de voto para ressaltar que o texto aprovado não altera o Código Penal.
No entanto, o artigo 12 do substitutivo diz que "é vedado ao Estado ou a particulares causar dano ao nascituro em razão de ato cometido por qualquer de seus genitores".
No caso de estupro, o substitutivo garante assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico para a mãe, e o direito de a criança ser encaminhado à adoção, caso a mãe concorde. "Identificado o genitor do nascituro ou da criança já nascida, este será responsável por pensão alimentícia e, caso ele não seja identificado, o Estado será responsável pela pensão", diz o projeto.
Ao nascituro com deficiência o projeto assegura "todos os métodos terapêuticos e profiláticos existentes para reparar ou minimizar sua deficiência, haja ou não expectativa de sobrevida extra-uterina".
O projeto é visto como "total retrocesso" pelos grupos que apoiam a descriminalização do aborto.
Prática envolve injustiça social com as mulheres
Conhecer a realidade do aborto no Brasil é um enorme desafio, pois implica estudar uma prática criminalizada e cercada de tabus morais.
Dados sociodemográficos sintetizados das pesquisas empíricas traçam o perfil de quem precisa abortar no Brasil: mulheres entre 20 e 29 anos, em união, com média de até oito anos de estudo, trabalhadoras, que afirmam ser católicas e já tiveram pelo menos um filho.
O uso de medicamento à base de misoprostol com fins abortivos predomina, nos casos dos últimos 15 anos. Não são nem mulheres adolescentes nem profissionais do sexo, tampouco estavam em relações eventuais, predominantemente.
Seu perfil se identifica com o do contingente populacional feminino em idade reprodutiva, que precisaria ter acesso à contracepção adequadamente orientada para o exercício de uma sexualidade autônoma.
Os riscos à saúde impostos pela ilegalidade do aborto são majoritariamente vividos pelas mulheres pobres e/ou pelas que não têm acesso aos recursos médicos para realizar um aborto seguro. Como já comprovado no plano internacional, isso implica a indução do abortamento, com orientação de profissional ou agente de saúde, pelo uso de medicamento à base de misoprostol.
Aquilo que diferencia as mulheres confrontadas ao drama da necessidade do aborto é, antes de mais nada, a chance de passar de forma mais ou menos (in)segura pelo processo.
Se todas são criminalizadas e expostas a danos morais, do ponto de vista da saúde pública, podemos afirmar que, no Brasil, o aborto é a prática de saúde perpassada pelas maiores injustiças e desigualdades ligadas à situação socioeconômica das mulheres.
DEPOIMENTO
Se tivesse assumido o filho, minha vida poderia ter sido pior
Conheci o Marcelo no último ano de faculdade de direito, para ser exata, em um festa da turma. Naquela época, tinha parado de tomar anticoncepcional porque estava sem namorado fixo. Ele era amigo de um amigo em comum. Durante a festa, bebemos muito.
Quando dei por mim, já estávamos no apartamento dele, transando. Depois disso, até fiquei a fim dele, mas ele passou a me evitar. Um mês depois, minha menstruação, que era regulada, atrasou. Na mesma hora, pensei: "Estou grávida".
Foi uma época terrível porque sabia que não poderia contar com ele e muito menos com minha família. Meu pai é um coronel do Exército e dizia que preferiria uma filha morta a uma filha mãe solteira.
Ao mesmo tempo, eu só estava começando a minha carreira de advogada. Tinha começado um estágio em um escritório de advocacia importante. Sabia que um filho naquele momento iria ser um balde de água fria.
Por isso, não pensei duas vezes em abortar. Uma amiga conseguiu o Cytotec (misoprostol) no mercado negro. Segui as instruções, mas o embrião não foi expelido. Tive que fazer uma curetagem. Foi traumático no momento, mas confesso que, com o passar do tempo, fui deixando de pensar no assunto. Não me incomoda.
Há 15 anos me casei, tenho duas filhas lindas, um emprego bacana e um marido que me apoia. Sou católica, mas não frequento missas.
Tenho certeza de que se eu tivesse assumido aquele filho, o curso da minha vida poderia ter sido outro, para bem pior. Acho um absurdo essa história de criminalizar mulheres por abortar. O Brasil quer ser tão moderno por um lado, mas é tão retrógrado por outro. É fácil e hipócrita jogar pedras quando não se vive o problema na pele.
LUCIANA BRAGA , 40, é advogada
Fonte: Folha de São Paulo
26 de maio de 2010
Assinar:
Postagens (Atom)